Sob um calor de mais de 30 graus Celsius, em um dos abrigos de Boa Vista (RR), centenas de venezuelanos trabalham como voluntários enquanto aguardam oportunidades para mudar de vida. Com os colchões do lado de fora das barracas feitas de poliuretano, material que retém ainda mais a alta temperatura, as famílias refugiadas buscam alternativas às incertezas.
Mesmo no cenário de improviso e sem muitos atrativos, as crianças venezuelanas criam espaços para brincar e se divertir.
Montado há apenas um mês, o Abrigo Rondon, o mais novo centro de acolhida da capital de Roraima, reúne 745 venezuelanos, dos quais cerca de 100 chegaram de Pacaraima, nos últimos dias.
Alguns venezuelanos voltaram para o país vizinho, outros foram para Boa Vista onde se unem a conterrâneos – alguns abrigados e outros nas ruas em busca de uma acolhida. No Abrigo Rondon, mais da metade dos abrigados são crianças e adolescentes, além de muitas mulheres grávidas e idosos. Homens solteiros foram para encaminhados para outro abrigo.
Para acolher os recém-chegados, os próprios venezuelanos construíram barracas improvisadas. Cada unidade tem capacidade para abrigar de seis a oito pessoas. Algumas famílias dividem o espaço das pequenas casas com lençóis.
Há os que preferem as redes sob as árvores. Apesar dos traumas causados pelas dificuldades na Venezuela e os desafios que têm pela frente no Brasil, os imigrantes afirmam que estão gratos por terem um local onde podem comer, tomar banho e dormir.
Casada e mãe de duas crianças pequenas, a vendedora de seguros Blanca Perosa, de 37 anos, emociona-se ao lembrar o que viveu nos últimos tempos e evita recordar o que enfrentou em Pacaraima, quando os venezuelanos tiveram barracas e pertences queimados por brasileiros, revoltados após um assalto.
Blanca apenas agradece por ter conseguido se salvar com a família e disse que espera se mudar em breve para outro estado do país para que seus filhos possam ter uma vida digna.
“[Espero que] sigamos adiante, que eles [os dois filhos pequenos] tenham uma boa educação, que eles possam se formar, profissionalizar-se e possam exercer sua carreira. Na Venezuela, por mais que estude ou tenha uma profissão, infelizmente, não é possível se sustentar”, afirmou Blanca.
A venezuelana conta que foi muito bem recebida no Brasil antes do conflito e que as agressões não se justificam. “Não queremos usurpar os benefícios dos brasileiros. Queremos poder contribuir para o desenvolvimento do país. Não queremos roubar nada, queremos lutar pela nossa liberdade e dignidade de ser pessoas”, acrescentou.
Do lado de fora dos abrigos, a sensação entre muitos moradores de Boa Vista é de que o governo está privilegiando os venezuelanos em relação aos brasileiros. É comum encontrar nas ruas da capital de Roraima pessoas criticando a chegada dos venezuelanos. As expressões utilizadas para definir os imigrantes são “invasão” e “praga”, entre outras depreciativas.
Agentes sociais que trabalham na assistência aos venezuelanos também já foram hostilizados. Ricardo Rinaldi, coordenador de emergências e assistência humanitária da organização não governamental Fraternidade, que abriga venezuelanos em Boa Vista e Roraima, relata que já teve dificuldades de conseguir desconto ou doação no comércio local para os imigrantes.
“Às vezes, a gente para nosso carro e eles dizem ‘vocês estão ajudando essas pessoas que não merecem ser ajudadas’”, contou Rinaldi.
Segundo os técnicos que trabalham com os imigrantes, o sentimento de animosidade é ainda maior na fronteira, onde ocorreram as agressões. “Em Pacaraima, a situação é mais crítica. A população lá tem um grau de xenofobia maior, parece. A nossa equipe já foi bem insultada por algumas pessoas”, relatou Ana Maria Moreira Bruzzi, gestora de relações institucionais da Fraternidade.
O Alto Comissariado da Organização das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) alerta que o fluxo migratório venezuelano inspira preocupação, não só no Brasil, mas em outros países da região e reconhece os desafios e as dificuldades da população de Roraima, principalmente pelo caráter forçado da migração dos venezuelanos.
No entanto, a agência da ONU ressalta que, apesar das dificuldades, a resposta brasileira ao fluxo migratório venezuelano tem sido considerada um modelo positivo e o fenômeno da migração pode trazer benefícios e oportunidades para o Brasil.
“Experiências mostram que fluxos semelhantes podem contribuir para o crescimento econômico da região, a visibilidade internacional e um enriquecimento sociocultural. Isso pode ser verificado nos três estados [Amazonas, Roraima e Pará] que receberam refugiados nos últimos meses”, informou.
Com relação ao conflito recente de Pacaraima, o Acnur espera que os responsáveis pelas agressões físicas e verbais sejam punidos e avalia que as reações violentas são geradas por desinformação.
Agência Brasil