Vitória (ES) – Apesar de as mulheres já representarem 50,9% dos médicos no Brasil, de acordo com o relatório Demografia Médica no Brasil 2025 do Ministério da Saúde, FMUSP e AMB, ainda enfrentam desigualdade salarial, baixa presença em liderança e especialidades cirúrgicas. Esse cenário revela barreiras invisíveis, muitas vezes sutis, que limitam o pleno reconhecimento e ascensão profissional das médicas.
Dra. Clarice Abreu, cirurgiã plástica e craniomaxilofacial, fez escolhas difíceis para construir sua carreira. “Minha trajetória foi feita de escolhas corajosas. Entrei em uma sala de cirurgia sabendo que nem sempre eu seria levada a sério de primeira, mas sempre acreditei que o que me faltava em espaço, eu conquistaria com dedicação e consistência. Como mulher, precisei me acostumar a ser uma das únicas. Mas com o tempo, transformei essa solidão em força. E hoje, olho para trás com orgulho por ter seguido mesmo quando tudo parecia mais difícil.”
Esses desafios nem sempre estão explicitados em livros ou estatísticas, mas se manifestam em olhares e atitudes. Dra. Clarice descreve: “Muitos dos desafios que enfrentei não estavam nos livros. Eram sutis, silenciosos, o olhar de dúvida, a expectativa de que eu fosse menos resistente à pressão ou emocional demais para decisões difíceis. Às vezes, era a dificuldade de ter minha voz ouvida em discussões técnicas, em congressos. Mas também enfrentei decisões duras fora do hospital, como equilibrar maternidade com sobreavisos, viagens e especializações.
O desafio maior, talvez, tenha sido nunca me deixar convencer de que eu deveria escolher entre ser mulher e ser excelente.” Nesse ambiente de alta exigência, ela enfrentou ainda mais cobrança sobre a performance. “Sim, muitas vezes. Senti que meu erro era um ‘fracasso feminino’, enquanto o erro do colega era apenas humano. O peso da prova recaía mais sobre mim: precisava ser impecável, porque sabia que uma falha não seria atribuída ao acaso, mas à minha condição de mulher. Isso me exigiu mais energia, mas também me tornou mais resiliente. E com o tempo, percebi que o reconhecimento vem, mais lento, sim, mas vem com raízes mais profundas.”
Dra. Clarice alerta que, mesmo hoje, a liderança feminina em centros cirúrgicos ainda é questionada: “ A autoridade feminina ainda é testada com mais frequência, e a liderança da mulher muitas vezes precisa ser doce, mas firme, algo que nem todos sabem aceitar. Em algumas mesas cirúrgicas, ainda há um incômodo silencioso quando a decisão final vem de uma mulher. Mas acredito que o espaço está sendo conquistado, cirurgia por cirurgia, exemplo por exemplo.” A presença de mulheres em papéis de destaque cumpre um papel transformador.
Dra. Clarice reflete: “Quando uma de nós chega lá, abre-se uma porta que parecia trancada. Não quero que as jovens médicas se sintam sozinhas como eu me senti no início. Quero ser um exemplo para as minhas residentes e alunas, para que elas vejam que é possível, sim, ser mulher, mãe, líder e cirurgiã de alta complexidade. Uma função não anula a outra.”
Embora a feminização da medicina esteja em evidência, ela reforça que ainda há um longo caminho até a igualdade real. “Avançamos, mas ainda não o suficiente. A presença feminina cresceu, mas a escuta verdadeira ainda é desigual. Temos mais médicas nas residências, mas ainda poucas em posições de liderança e decisão. O caminho está sendo trilhado, com coragem, com esforço coletivo, mas ainda precisamos transformar estruturas, não só estatísticas.”
No atendimento, a participação feminina representa força transformadora. “A mulher médica carrega uma escuta sensível, um olhar atento ao invisível. Em áreas como a cirurgia plástica pediátrica ou reconstrutora, isso faz toda a diferença. A técnica é essencial, mas a empatia transforma. Nós temos uma intuição de acolher não só o paciente, mas a família, os medos, as dores não‑ditas. E isso é uma força, não uma fraqueza.”
Mas para que essa revolução se consolide, ela defende mudanças concretas nas instituições. “Gostaria de ver estruturas que compreendessem a realidade da mulher médica, especialmente a maternidade (e a licença maternidade). Que a gestação não fosse vista como uma fraqueza ou um problema logístico, mas como parte da vida da profissional. Que a liderança feminina fosse incentivada com políticas reais, e não apenas com discursos. E que as escolas médicas formassem líderes com consciência de gênero desde cedo.”
Por fim, ela deixa uma mensagem de incentivo e inspiração: “O medo vai estar presente, mas ele não precisa ser um freio, pode ser um motor. Confie no seu valor, mesmo quando ninguém validar. Procure referências, mentoras, apoie-se em outras mulheres. Não aceite a narrativa de que você precisa escolher entre ser forte ou ser sensível, você pode ser as duas coisas. A técnica se aprende, a coragem se constrói. E você não está sozinha.”